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Da ojeriza à caridade: os 'leprosos' de Sorocaba

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Projeto de construção do Hospital dos Lázaros de Sorocaba (séc. XIX). Acervo: Gabinete de Leitura Sorocabano


No ano de 1870 uma preocupação atormentava o espírito dos sorocabanos a tal ponto de suscitar sugestões de medidas drásticas. Bandos de pessoas invadiam a cidade, atemorizando a população que se sentia acuada e indefesa. Pedia-se a ajuda das autoridades, sugeria-se, por oportuno, que “lhes fosse prohibida a entrada na cidade” (O SOROCABANO, 1º maio 1870, p. 2). Eram “terríveis peregrinos” que andavam pelas ruas “em esquadrões de metter horror”, solicitando da imaginação das autoridades um modo de livrar-se deles (O SOROCABANO, 1º maio 1870, p. 3). O jornal da época perguntava em tom de desesperança, o que poderia a polícia contra esses bandos?

Há que se lembrar que a Guerra do Paraguai terminara há menos de dois meses, talvez se pudesse pensar que tais bandos fossem compostos por desertores ou mesmo soldados rebeldes e desajustados que, aproveitando-se de sua experiência bélica, apavoravam as cidades que tivessem ligação direta com o sul do país, local próximo dos palcos de batalhas. A dedução, embora factível, não era real.

Longe de serem os tais bandos compostos por homens armados e treinados, que pudessem usar sua força contra povos indefesos, aqueles que causavam horror aos sorocabanos naquele maio de 1870 eram pessoas que carregavam em seu corpo o estigma de uma terrível doença que causava deformidades, incapacidades e danos severos aos nervos e pele. Então, por que causavam tanto temor na população sorocabana?

Eram hansenianos, chamados de morféticos ou leprosos, ou seja, portadores de uma enfermidade contagiosa e deveras estigmatizada. O imaginário construído sobre a lepra durante o correr da História a carregou exacerbadamente de um caráter negativo. A hanseníase era considerada símbolo de impureza no Antigo Testamento, declaração esta que devia ser feita pelo sacerdote. Esse mesmo religioso era quem, após exame, verificava a condição daquele que fora afetado pela doença e de acordo com um complexo regramento dizia se o enfermo estava puro ou impuro, ou seja, se estava curado ou não, conforme o disposto no Livro de Levítico, capítulo 13. Desde essa época eram os leprosos obrigados a se isolarem das comunidades, sendo compelidos a gritar “Imundo, imundo” diante da proximidade de alguém. [1]

Imundo ou impuro era sinônimo de amaldiçoado, de pecador. Por isso a necessidade do exame de aprovação de um sacerdote, comprovando que a lepra teria sido curada, para que se pudesse voltar à vida em sociedade. A rebeldia da irmã de Moisés, Miriã, foi, segundo o relato bíblico, punida com a aquisição temporária da lepra.[2] Deus não permitiu que ela criticasse ao seu irmão Moisés, e por isso ficou leprosa por sete dias, nos quais se manteve fora do acampamento.

Portanto, no imaginário popular, a lepra (ou morféia) tinha como causa algum desvio de conduta, de caráter pecaminoso, e que, por isso, servia de punição. Então, além do caráter profilático – com o intuito de evitar a contaminação de outras pessoas – o confinamento e exílio do doente tinha uma idéia de exclusão dos “impuros”, ou seja, daqueles que teriam merecido tal sorte. Ao longo da História, a relação que se desenvolvia entre os leprosos e os “saudáveis”, aqueles que não haviam sido atingidos pelo “castigo”, foi se modificando de acordo com os interesses e a formação das relações de poder. Afinal, o “controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo” (FOUCAULT, 1984, p. 80). No caso da lepra, o tratamento dado ao doente, na Idade Antiga até a Contemporânea foi o da exclusão.


Houve fundamentalmente dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Na Idade Média, o leproso era alguém que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos, malfeitores, etc:, em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. [...]

Tem-se, portanto, o velho esquema médico de reação à lepra que é de exclusão, de exílio, de forma religiosa, de purificação da cidade, de bode expiatório (FOUCAULT, 1984, pp. 88 – 89).


Do final do século XIX aos primeiros anos do século XX, o tratamento ao hanseniano no Brasil teve características muito próximas ao que Michel Foucault identificou como sendo o esquema utilizado na Idade Média suscitado pelo aparecimento da Peste Negra: “não mais a exclusão, mas o internamento; não mais o agrupamento no exterior da cidade, mas, ao contrário, a análise minuciosa da cidade, a análise individualizante, o registro permanente; não mais um modelo religioso, mas militar. É a revista militar e não a purificação religiosa que serve, fundamentalmente, de modelo longínquo para esta organização político-médica” (FOUCAULT, 1984, p. 89). Em Sorocaba, esse modelo era perseguido como ideal desde as primeiras décadas do século XIX, como medida de controle social. Em 1833 emitiu-se uma Postura Municipal, ou seja, um regulamento oriundo da Câmara Municipal, que proibia entrada de leprosos dentro dos muros da Vila, cabendo ao ajudante de porteiro o controle dessa proibição (ALMEIDA, 1969, p. 196). Obviamente que tal postura não vingou pela inexequibilidade, uma vez que seria impossível a um ajudante sozinho controlar a entrada e saída de leprosos por todo o território da cidade. Por isso, em 1834, um ano depois, a mesma Câmara Municipal percebe a necessidade da criação de um Hospital de Lázaros, como também eram conhecidos os leprosos.

Há uma curiosidade aqui sobre o termo lázaro. Provavelmente, refira-se a um personagem não-histórico, mas citado numa parábola dita por Jesus e registrada pelo evangelista Lucas, na qual esse personagem é tratado como um pobre homem com o corpo coberto de feridas.[3] Ocorre que havia outro personagem, esse provavelmente histórico, morador de Betânia, também chamado Lázaro e que foi ressuscitado por Jesus. A esse personagem a Igreja Católica elevou à categoria de santo e sua imagem, de acordo com o hagiológico, é a de um homem coberto de chagas, o que deve ter ocorrido por uma associação equivocada entre esses dois personagens. O fato é que São Lázaro, de Betânia, acabou tornando-se padroeiro dos leprosos (e mendigos) e, por extensão, nomeando o portador da doença.

O Hospital pretendido serviria, na concepção dos vereadores da época, para evitar que os lázaros se juntassem nos arrabaldes da cidade em ranchos onde realizavam festas e mantinham relações sexuais entre eles, e mesmo com escravizados que buscavam na contaminação da doença o alívio do cativeiro. Pretendiam, ainda, os edis proibir por meio de Postura a cessão de esmola para os lázaros (CAVALHEIRO, 2006).

Mas do que se depreende, de fato, a partir das acusações que são feitas pelos vereadores, sobre os reais motivos da necessidade de criação do Hospital? Disseram os legisladores sorocabanos que os lázaros eram provenientes do município de Sorocaba e de muitos outros lugares, alguns dos quais fugitivos do Hospital de Itu e que “depois de mendigarem esmolas pelas ruas, alli [nos ranchos montados nos subúrbios] se recolhem em pagodes de ambos os sexos, e entrão a comerciar com as escravas, muitas das quais de propozito se comunicão com elles afim de enjeitadas, e assim conseguirem suas liberdades” [4] Os vereadores sorocabanos ainda deviam considerar uma afronta essa migração de leprosos de Itu para Sorocaba, sobretudo porque a Câmara Municipal desta última enviava um aporte anual para auxílio da manutenção do Hospital ituano, pois entendia que “esse estabelecimento também beneficiava a sua população” (NARDY FILHO, 2000, p. 132). A ideia, portanto, era a de que os morféticos ficassem confinados dentro dos muros do Hospital da cidade vizinha, e não que fugissem de lá para formar ranchos nos arrabaldes e cercanias sorocabanas. A pretensão era contribuir com Itu, que tinha seu Hospital em funcionamento desde 1806 (NARDY FILHO, 2000, p. 131), para evitar que os doentes se espalhassem pelas cidades. Dentro dessa lógica, o confinamento e a exclusão da sociedade eram as alternativas que atendiam tanto a vigilância, quanto ao controle e a segregação.


O leproso é visto dentro de uma prática da rejeição, do exílio-cerca; deixa-se que se perca lá dentro como uma massa que não tem muita importância diferenciar (FOUCAULT, 1987, p. 164).


Em 1870 o jornal O Sorocabano lamentava o fato de que “não há entre nós asilos de mendicidade, e assim não se pode dar a prohibição absoluta da mendigaria”, mesmo porque a legislação da época, o artigo 296 do código criminal, proibia a mendicância para os que pudessem trabalhar; mas que isso era impossível de se exigir dos lázaros que “andavam em esquadrões de metter horror” (O SOROCABANO, 1º maio 1870, p. 3).

Em ambos os casos e em quaisquer outros que se analise, o fato que emerge é a necessidade do controle social, especialmente o controle sobre a incômoda liberdade do outro, que não pode mais ter seu corpo docilizado e nem sua vontade controlada. Afinal, carrega consigo não só o estigma da doença, mas o poder de transmiti-la, de espalhá-la a quem ainda não foi contaminado. Então, o primeiro gesto é o da repulsa, da ojeriza, da exclusão. No entanto, jogados à sorte, a exclusão converteu-se na liberdade pela falta de possibilidade de controle pelo poder instituído. Então, muda-se a estratégia convertendo a ojeriza em caridade com o intento de que, no isolamento dos nosocômios, pudesse controlar o trânsito desembestado, o mal exemplo do ganha pão sem o trabalho e, ainda, a vida sem as regras do tempo e sem a amargura da alienação imposta pelas extensas horas trabalhadas. Uma vida errante, despreocupada e festeira, porque a morte – e a deformação física e a exclusão social – eram certas.

Nenhum desses textos traz em primeiro plano a preocupação com a saúde ou o tratamento dos doentes. O apelo é sempre evidenciado nas práticas sociais dos hansenianos e não em seu estado de saúde. A necessidade da criação do Hospital é colocada como forma de controle dessa população que está espalhada e livre, ocupando os mesmos espaços que os sãos, invadindo a cidade.


Lasaros – Levanta-se de todas as partes um grande e justíssimo clamor contra a invasão de morphéticos n’esta cidade. Já não são indivíduos isolados, mas bandos que percorrem as ruas, pedindo esmolas. É realmente de causar apprehensões o augmento d’esses infelizes, e a liberdade com que se communicam com os sãos. É urgente tomar alguma providencia a esse respeito. O assumpto é grave, e não lhe sabemos remédio prompto e efficaz [...] (O SOROCABANO, 1º maio 1870, p. 2).


A existência de ranchos de leprosos não era novidade naqueles oitocentos. O historiador Francisco Nardy Filho informa que “mesmo em Ytu, logo a sahida da estrada de S. Paulo, existiam diversos ranchos, onde habitavam diversos morpheticos que, á noite, vinham fazer suas compras á cidade” (NARDY FILHO, 2000, p. 130). Esse foi um dos motivos pelos quais se pensou em construir um Hospital de confinamento.

Em 1875, o jornal sorocabano A Voz do Povo retomava o assunto da preocupação com o livre trânsito dos morféticos, os quais poderiam espalhar a contaminação de sua doença ao manter o contato com a população saudável. Aparentemente, carregava-se nas cores desse discurso como justificativa para a tomada de medidas repressivas, tais como a que houvera sido proposta: a do impedimento do livre trânsito pelas ruas da cidade. Na tentativa de convencer o leitor, e assim formar opinião, semeava-se o medo pela contaminação, especialmente porque, como estratégia de sobrevivência, os leprosos costumeiramente mendigavam à caridade pública.


Aos sabbados e domingos uma grande turma de morphéticos vindos de diversos lugares, percorrem as ruas desta cidade pedindo esmolas.

Muitos não carecem dellas para viver, e se mendigam, é porque a mendicidade além de trazer-lhes alguns cobres, que são consumidos no copo, pelas tabernas, permitti-lhes passear pelas ruas e offerece-lhes occasião para travarem conversações com aquelles em cujo seio não podem viver.

[...]

Não é preferível a sua separação à actual convivência tão perniciosa hoje e amanhã ainda mais?

Se este meio ainda não é praticável, lembramos outro: seja-lhes prohibido vagar pela cidade; pague-se alguém para por elles tirar esmolas e entregar-lhes o resultado nas barracas e ranchos [...] (A VOZ DO POVO, 10 dez 1875, p. 1).


Palavras como separação e proibição de vagar pela cidade denotam o caráter repressivo das propostas. Apesar disso, o Hospital dos Lázaros, em Sorocaba, passará por todo o século XIX apenas como um vago discurso que se perdia na imensidão da planície. Enquanto isso, os morféticos continuavam isolados nos arrabaldes da cidade, sobretudo no bairro do Cerrado próximo a uma figueira grande que ali existia há tempos (DIARIO DE SOROCABA, 18 jul 1885, p. 2).

O discurso da ojeriza, no entanto, vai sendo modificado amiúde para o da caridade cristã. A justificativa é sempre de que a construção do Hospital é uma atitude de caridade, pois o que se almeja é dar abrigo das intempéries, é fornecer alimentos e vestimentas, é promover “os soccorros da religião e da medecina, que por certo muito alliviarão suas dores physicas e moraes” (A VOZ DO POVO, 10 dez 1875, p. 1). Entretanto, no mesmo discurso sempre se verifica a presença de propostas de isolamento total, de ação policial para reprimir e proibir a circulação na cidade, cerrar as porteiras para que não pudessem mais invadir a urbe. Comentava-se que o estado de saúde dos hansenianos requeria o isolamento a fim de se evitar a disseminação da doença para o restante da população.

O isolamento de lázaros vai ser definitivamente concretizado em Sorocaba com a inauguração na primeira década dos 1900 de uma Vila de confinamento. No final de junho de 1912, o jornal Cruzeiro do Sul publicou uma extensa notícia, com destaque de primeira página e títulos garrafais, dando conta da breve inauguração da Villa de São Lázaro, composta por “dois grupos de três casas cada um, tendo ao centro a elegante capella de S. Lázaro” (CRUZEIRO DO SUL, 30 jun 1912, p. 1). Essa vila estava localizada na mesma região em que tradicionalmente ficavam confinados os leprosos em seus ranchos próximos da grande figueira: o bairro do Cerrado, na zona oeste de Sorocaba. A Vila existiu até 1930, quando os hansenianos foram encaminhados coercitivamente para o Hospital Pirapitingui, em Itu.


Os milhares de doentes, que acampavam nas estradas do interior paulista e esmolavam nas ruas da cidade, levaram o Governo do Estado de São Paulo, a adotar, na década de 1930, uma política oficial de controle profilático baseada no isolamento obrigatório (compulsório) dos leprosos (AUVRAY, 2005, p. 33).


A criação de Asilos-Colônia tinha por objetivo aperfeiçoar o controle que se pretendia realizar desde o século anterior, mas sem muito sucesso. A emissão do Decreto Lei Estadual nº 5.965, de 30/06/1933 tinha, entre seus objetivos, o de “providenciar sobre a internação, no menor prazo possível, de todos os doentes de lepra existentes no Estado”, o que, de acordo com o artigo 9º, era de obrigação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra a sua efetivação. Anexava ainda á Inspetoria de Profilaxia da Lepra o Sanatório "Padre Bento", o Asilo Colônia "Santo Ângelo", o Asilo Colônia "Pirapitingui", o Asilo Colônia "Cocais" e o Asilo Colônia "Aimorés", estimando em 6.050 o número de doentes de lepra observados, dos quais, 2.344 já estavam internados naquele ano. Considerava-se também que estavam em vias de conclusão as construções de outros asilos-colônias para a internação de mais 1.000 doentes, até o final do ano de 1933.[5]

O texto do Decreto Lei deixa claro que se almejava excluir do contato com a população todos os doentes de lepra. Um projeto ambicioso e que, obviamente, causou tensões e conflitos. A historiadora Katia Auvray, ao tratar do Asilo de Pirapitingui, em Itu, diz que os leprosos eram “caçados como animais”, depois da emissão da “lei conhecida como ‘Compulsória’” (AUVRAY, 2005, p. 42). Por isso, “os doentes se escondiam no mato, fugindo da Guarda Sanitária que os levaria para o leprosário” (AUVRAY, 2005, p. 42). A historiadora continua informando que as “fugas eram freqüentes e ocorriam até mesmo no dia da internação. Quando capturados, voltavam a fugir, mesmo sabendo que – se pegos – cumpririam pena na cadeia” (AUVRAY, 2005, p. 42). A internação compulsória no Estado de São Paulo se estendeu até o ano de 1962. Em 2004 o Ministério da Saúde emitiu a Portaria 585 que instituiu o Grupo de Trabalho para diagnóstico dos hospitais colônia, tendo como um dos fundamentos, exposto em seu caput, o reconhecimento de que “pessoas asiladas nos antigos hospitais colônia, que são frutos de uma política de isolamento compulsório que persistiu equivocadamente ao longo do tempo, necessitam de assistência hospitalar e social”.

Após a publicação dessa Portaria, surgiram propostas de leis como o PL 741/2006, do Estado de São Paulo, que dispõe de concessão de salário mínimo mensal vitalício a pessoas portadoras de hanseníase que tenham sofrido internação compulsória no período de 1933 a 1962 (AUVRAY, 2005).

A despeito disso, algumas coisas não mudaram ainda. Os leprosos ou morféticos sofreram internação compulsória no Estado de São Paulo entre os anos de 1933 a 1962, sendo que a perseguição e a tentativa de exclusão do convívio social eram praticadas ou, ao menos, almejadas desde o início do século XIX. A esses doentes não restava outra estratégia de sobrevivência que não fosse a mendicância. Por isso, ao compulsar as fontes históricas, verifica-se que mendigo e morfético são termos quase que amalgamados.

O jornal Cruzeiro do Sul, edição de 22 de junho de 2015, em matéria publicada na página A8, divulgou o descontentamento dos comerciantes do centro da cidade com o aumento do número de moradores de rua. De acordo com a matéria, assinada pelo jornalista Anderson Oliveira, “o problema tem resultado em brigas e ameaças a quem trabalha e transita pela região central”. A matéria jornalística aponta que o posicionamento oficial da Polícia Militar é o de que “essa é uma questão social mas quando ocorre ameaça é necessária intervenção”, opinião essa compartilhada com a Guarda Municipal. A Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) afirmou que “não pode retirar essas pessoas do convívio público, mas oferece serviços sociais de apoio a essa população”. Um comerciante ouvido pela reportagem disse que apesar de acionar a Polícia Militar, pelo fato de os moradores “amanhecerem sempre na calçada”, recebe como resposta que aquelas pessoas também possuem o direito de ir e vir.

O capitão Sidney Roberto Vieira Gomes, do 7º Batalhão de Polícia Militar do Interior reafirmou o direito dos moradores de rua, solicitando, ainda, da população que pedisse ajuda da Polícia Militar “apenas se houver ameaça e a necessidade de intervenção”.

A reportagem citada demonstra o quanto ainda incomoda a presença dos desprovidos economicamente, disputando o espaço com os “economicamente ativos”. Apesar da mudança de mentalidade por parte dos detentores do Poder, que enxergam, ao menos no discurso oficial, que se trata de caso de vulnerabilidade social; a população de uma forma geral ainda considera que deva ser uma questão resolvida no âmbito policial, com repressão e “higienização” das ruas, com exclusão, com a expulsão. Ainda assim, essa população de moradores de rua sofre com a ação policial quando acionada por alguém que se sente “ameaçado”.

A par disso, a memória histórica desses desprivilegiados é constantemente lesada pelo esquecimento. O mesmo jornal Cruzeiro do Sul publicou um caderno especial sobre a Zona Oeste de Sorocaba (edição de 21 de junho de 2015). O caderno com 40 páginas esqueceu-se de contar a tradicional relação entre o bairro Cerrado e os leprosos de Sorocaba. Nem mesmo aproveitou o ensejo da divulgação de seu Editorial, no dia seguinte, no qual festejava a si mesmo pela publicação do caderno especial. O Editorial discorreu sobre vários aspectos da região oeste e terminou dizendo:


Todo esse panorama faz parte das nossas histórias de vida. E o Cruzeiro repercute esse lado pulsante da cidade dentro da sua missão de informar e contribuir para o fortalecimento dos valores democráticos, de liberdade e de cidadania.

No mês do aniversário de 112 anos do jornal, marcado pela apresentação de uma revolução digital por meio da sua versão e-paper e do uso dos recursos oferecidos pela internet e suas novas mídias, o Cruzeiro do Sul, consolidando sua tradição de identidade sorocabana e regional, distribuiu ontem aos leitores mais um conteúdo editorial que contribui para ampliar o conhecimento que temos da nossa cidade (CRUZEIRO DO SUL, 22 jun 2015, p. A3).

E nem pode ao menos rogar pela ignorância do assunto: na coluna “Um dia na história”, nesse mesmo jornal, do dia 30 de junho de 2015, o jornalista Eric Mantuani publicou que em 1912 o Cruzeiro do Sul noticiou a inauguração da “Villa de S. Lazaro”, no Cerrado. A informação não constou no caderno especial sobre a Zona Oeste. Não foi, entretanto, por falta de conhecimento.

O silêncio sobre a história dos leprosos (hansenianos) de Sorocaba contribui para uma visão acrítica e nada reflexiva sobre como se deram – e continuam – as relações entre aqueles que possuem recursos financeiros e os que vivem em situação de vulnerabilidade social. O silenciamento colabora, também, para o exercício de uma pedagogia da antidialogicidade, da exclusão, da desumanização. O que se espera é o oposto, ou seja, o estabelecimento de uma pedagogia que permita o diálogo dos homens e destes com o mundo, possibilitando a pronúncia desse mesmo mundo (FREIRE, 2011). Eis aí o desafio do Educador, promover a pedagogia do diálogo com todos, em respeito a todas as diferenças. Uma pedagogia que não permita jamais a transmutação da diferença em desigualdade.



Carlos Carvalho Cavalheiro.


BIBLIOGRAFIA


ALMEIDA, Aluísio de. História de Sorocaba. Sorocaba: IHGGS, 1969.

AUVRAY, Kátia. Cidade dos Esquecidos – a vida dos hansenianos num antigo leprosário do Brasil. Itu: Ottoni Editora, 2005.

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006.

DANTAS, Arruda. Padre Bento. São Paulo: Pannartz, 1987.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

________________. Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

__________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

IANNI, Octávio. Uma cidade antiga. São Paulo: Museu Paulista da USP, 1988.

NARDY FILHO, Francisco. A cidade de Itu – vol. 1. Itu: Ottoni, 2000.

[1] Lv 13.45 [2] Nm. 12 [3] Lc 16 [4]Registro de Ofícios que a Camara Municipal desta Villa dirigi às diferentes authoridades, 1834, Livro 15, p. 10, Acervo do Museu Histórico Sorocabano. Citado por CAVALHEIRO, 2006, p. 82. [5] Decreto Lei n. 5965/1933. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1933/decreto-5965-30.06.1933.html Acesso em 11 jun 2015.

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