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A Batalha do Vau do Pembe (1904): Um Capítulo Heroico na Resistência Africana ao Colonialismo Europeu


A Batalha do Vau do Pembe noticiada em um jornal brasileiro. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

A versão digital do Jornal de Angola, em matéria publicada no dia 8 de outubro de 2023, destacou em forma de manchete o desejo de evidenciar a memória dessa página da resistência africana contra o jugo colonialista europeu: “Batalha do Vau do Pembe merece maior divulgação”. [1] Escrita por Elautério Silipuleni, a matéria jornalística destaca que “a governadora do Cunene, Gerdina Didalerlwa, disse ser necessário que os jovens conheçam a história da Batalha do Vau Pembe, para perceberem o caminho percorrido, os sacrifícios consentidos e, sobretudo, como edificamos o desenvolvimento do país, no contexto da África Austral”.

          Ao que parece, a despeito de sua importância histórica – como um marco na resistência contra o colonialismo – a Batalha do Vau do Pembe foi esquecida pela historiografia. Mesmo no Brasil, país em que há um esforço para a pesquisa e divulgação da História da África, até por força de leis que obrigam esses estudos nas escolas,[2] a Batalha do Vau do Pembe ainda não encontrou espaço nas páginas dos livros didáticos.

          Em geral, fala-se muito da Revolta dos Ashanti, da Costa do Ouro (atual Gana) contra os invasores britânicos (1874 – 1896); a Revolta Zulu, também contra os britânicos na África do Sul, a resistência etíope, sob a liderança de Menelik II, contra os italianos; e, mais recuado, no século XVII, a guerra contra o avanço português em terras da atual Angola, liderada pela rainha Nzinga, também conhecida por Jinga ou Ginga, dos reinos de Ndongo e de Matamba.

          Porém, a Batalha do Vau do Pembe foi soterrada pelo pó do tempo e do esquecimento. Porém, a consulta a documentos de época podem ajudar a recuperar esse importante episódio da história de Angola.

          As raízes dessa revolta remontam a décadas antes de sua eclosão, ocorrida em fins de setembro de 1904. O pesquisador Armando Augusto Siqueira, autor do artigo intitulado “ANGOLA E A RESISTÊNCIA COLONIAL: O CASO DO MASSACRE DOS DRAGÕES DO CONDE DE ALMOSTER, 1897”, afirma que na intenção de estabelecer uma barreira sanitária, a fim de evitar a difusão de epidemia de morbo, o governo português impediu a passagem de gado da margem esquerda para a direita do rio Cunene. Isso prejudicou a economia dos povos que viviam na região e eram criadores de gado bovino.

          Outra providência dos portugueses foi a de promover a vacinação do gado. No entanto, os encarregados dessa tarefa estavam escoltados por soldados da Companhia de Dragões do Planalto de Moçamedes, sob o comando do capitão José Eugenio da Silva. A presença dos militares deixou alarmado o soba de uma aldeia e seu povo, pois em seu entendimento não havia necessidade de militares para promover a vacinação do gado.

          Mesmo decidindo-se pela retirada e suspensão da vacinação, os soldados portugueses tiveram de enfrentar ataques dos povos da região num confronto que ficou conhecido como o Massacre dos Dragões do Conde de Almoster, em dezembro de 1897.

          Esse episódio demonstra que a relação entre os portugueses e os povos que viviam nas proximidades do rio Cunene eram bastante conflituosas.

          Em 1904, Portugal resolve consolidar seu domínio sobre as terras angolanas. Disputa com a Inglaterra as fronteiras de suas possessões cujo limite seria o reino dos Barotze, fronteira com a Rodésia (CORREIO PAULISTANO, 11 abr 1904, p. 1) e se prepara para subjugar os cunhaemas, povo que habitava as proximidades do rio Cunene. O jornal Correio Paulistano anunciava em longo artigo publicado por Mascarenhas Galvão, que o exército português já prenunciava a dificuldade de submeter os cuanhamas ou cunhaemas:

          

A tribu dos cuanhamas tem o seu habitat, como dissemos, no interior do districto de Mossamedes, que é o mais meridional da província de Angola. São conhecidas as suas relações com a tribu vizinha dos herreros, que está já em território allemão, pois os nossos domínios na Africa Occidental confinam pelo sul com as colônias allemãs. A importância militar dessa tribu dos herreros demonstra-se pelo trabalho que tem dado às forças germânicas que, apesar da sua qualidade e do número dos seus expedicionários, ainda não conseguiram submettel-a. Tudo leva, pois, a crêr que a campanha que vamos iniciar para submetter os cuanhamas será verdadeiramente diffícil, por ser essa tribu a mais forte, resistente e bem armada das que habitam o interior de Angola, e por ter ligações com a dos herreros.

Espero comtudo que mais uma vez a sorte das armas nos será favorável, tornando-se assim a África uma espécie de consolação para este povo que tão abatido se montra na Europa em frente dos outros, mas que além, nessas plagas africanas, tem mostrado um valor e uma perícia militar que nem todos possuem” (CORREIO PAULISTANO, 19 jul 1904, p. 1).

 

          Do trecho acima, se destacam duas informações cruciais. A primeira é que o domínio total do território angolano representava a salvação econômica para Portugal, assim como para todas as outras potências europeias. Embora Portugal tenha chegado à África no século XV, a consolidação dos seus domínios, como vemos, perdurou até o século XX. Outro fato interessante é a revelação da resistência empreendida pelo povo herrero, que dificultou a dominação alemã sobre aquela parte da África. Esse é mais um episódio esquecido pela historiografia.

          Outro jornal brasileiro, da cidade do Rio de Janeiro, também noticiou em suas páginas as tensões entre os nativos africanos e os invasores europeus:

 

Lisboa, 12 – Foram hoje decretadas importantes medidas para garantir a pacificação das revoltas indígenas ao sul da Angola.

Ao que referem notícias, ultimamente recebidas, a colônia allemã de Ovampo, na parte do território limitrophe com o da província de Auilla, está também com desassossego motivado pelas constantes correrias dos indígenas (JORNAL DO BRASIL, 13 jun 1904, p. 2).


          Os portugueses mobilizaram suas tropas para a margem esquerda do rio Cunene no dia 19 de setembro de 1904. O destacamento português, ao que consta, era formado por 499 soldados. No dia 25 de setembro deu-se a Batalha que ficou conhecida como Vau do Pembe. O jornal Gazeta de Notícias, da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, informou à época que “em uma emboscada dos indígenas, foi surprehendida uma parte considerável das tropas portuguesas enviadas ultimamente para suffocar a rebelião dos pretos cuanhamás” (GAZETA DE NOTÌCIAS, 6 out 1904, p. 1).

          A derrota dos portugueses foi recebida como uma verdadeira “hecatombe”: 254 mortos.

          Dentre os guerreiros africanos, estavam também os ovambadja ou mbadja. O historiador Leonardo Tuyenikumue diz que os portugueses, ao atravessarem o rio Cunene, foram surpreendidos pelos ovambadjas que usaram de armas tradicionais (como arco e flecha, zagaia, machadinha), mas também armas de fogo, conquistadas das batalhas anteriores.

        A derrota foi tão impactante para os portugueses que o governo havia decidido enviar uma nova expedição composta de cinco mil homens, além de navios de guerra.

A Batalha do Vau do Pembe é um testemunho vívido da resistência africana em face do colonialismo europeu. O evento não só honra a coragem dos que lutaram, mas também oferece lições valiosas sobre a importância de preservar a identidade cultural e a determinação inabalável em meio às adversidades. Este capítulo heroico na história angolana é, sem dúvida, uma luz que ilumina o caminho da compreensão da resistência africana contra o jugo colonial.

      Atualmente, a Batalha do Vau do Pembe é considerada um Patrimônio Cultural de Angola. Só resta agora pertencer de fato à memória do povo angolano, sobretudo daqueles cuja origem se coaduna com a dos guerreiros que bravamente resistiram à invasão colonialista europeia.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

02.02.2024

 

 


[2] Um exemplo é a Lei 10639/03, atualizada para Lei 11645/08, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tornando obrigatório o ensino de História e cultura africana e afro-brasileira, assim como a indígena, nas escolas brasileiras.

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