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Memórias paralelas

Atualizado: 22 de mar.


Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro. Trabalho artístico de Flávia Aguilera, 2016


* Julio Schneider Neto

 

 

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio

Caetano Veloso, 1977

 

Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não pára

Cazuza, 1988

 

O objetivo desse texto é tentar refletir sobre aspectos da história, memória e patrimônio no Brasil contemporâneo, para isso, alinhavamos paralelos entre o texto: [1] História, memória, patrimônio de Manoel Luiz Salgado Guimarães publicado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2012) com o texto de Luciana Heymann: O "devoir de mémoire" na França contemporânea : entre a memória, história, legislação e direitos (2006).

 

História, memória, patrimônio, por Manoel Salgado

 

A problematização posta por esse autor deve-se ao ocorrido no evento bianual berlinense, intitulado:  A Longa Noite dos Museus, em sua 22ª edição em janeiro de 2008. Saltou aos olhos que o museu mais requisitado não era nenhum daqueles centrados na Ilha dos Museus[2], mas sim o novato DDR - Museum, museu reservado a vivenciar experiências da extinta Alemanha Oriental Socialista com um amplo repertório interativo.

Quais motivos levaram ao sucesso de público desse museu? A interatividade? O museu tem como ponto máximo, entrar no Trabi, automóvel símbolo da República Democrática Alemã. Trata-se aqui de uma experiência, que qualquer encontro de carros antigos/raros proporciona ao visitante, seja no Trabi, no Jeep Willys M38[3] ou no primeiro Fusca de 1938[4]. A curiosidade não está, propriamente, na experimentação desse(s) objeto(s) do socialismo alemão.

Tal interatividade chega ao ponto também, onde o visitante, pode, ao mesmo tempo ser o testemunho e o narrador da história deste museu, uma vez que, há uma proposta denominada:


“Escreva um pedaço da História” - um formulário distribuído pelos organizadores aos visitantes, convidando-os a participar de uma denominada “História”, elaborada com relatos, memórias ou objetos que tenham qualquer relação com a vida na antiga República Democrática Alemã’. (Salgado, 2012. p.93).

 

Essa atividade museológica é uma novidade? Qual museu em toda a história dos museus, não tem um livro com o objetivo de  expressar nossas vivências da visita?

A curadoria do museu tem seu papel, mas não no quê ou como, mas no porquê. O fenômeno de público, como alerta Salgado, está no sentido exótico desse museu. O museu do outro. Como se aquela experiência social, política, econômica e cultural, cunhada na Alemanha Socialista não fosse europeia. Esse museu serve à memória daquilo que não reconheço, daquilo que deve permanecer estático no passado. É um esforço hercúleo em negar experiências históricas fora da atual lógica hegemônica. É aquilo que meus descendentes devem ver, no limite, como cômico, como aquele tombo que levamos; e depois de instantes todos riem.

Salgado, retrocede aos nacionalismos europeus do século XIX e como esses estados nacionais se pautaram na construção de uma narrativa histórica e patrimonial para alicerçar e justificar a existência desses estados. No caso específico da Alemanha engendra-se na já citada Ilha dos Museus, portanto, esse estado-nação lançou mão da construção desses espaços de memória, neste caso os museus de si, - da Alemanha “vitoriosa” que se perpetua até hoje, ao mesmo tempo, e contemporaneamente, fomenta um espaço de memória (leia-se museu) de uma história recente de uma outra Alemanha, - museu do outro, da “parte” derrotada. Em última análise, o DDR Museum serve a um projeto político.

 

O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre memória, história, legislação e direitos, por Luciana Quillet Heymann

 

Heymann também se apropria de uma experiência francesa[5] para organizar elementos constitutivos daquilo que será chamado de dever de memória, como expresso nessa passagem:


“Na França, a memória, acionada em sua acepção de dever, é arma na luta política travada por cada grupo social, em busca de reconhecimento e direitos, junto ao Estado;

na luta que opõe grupos sociais entre si, na disputa por reconhecimento e políticas governamentais; na luta entre mediadores, sejam eles líderes comunitários ou parlamentares, em disputa pela projeção da memória do grupo que representam e, finalmente, na luta que opõe grupos de historiadores, na medida em que o debate sobre o dever de memória atualiza disputas por reconhecimento acadêmico, por projeção na mídia, pelo direito, enfim, de falar em nome da categoria” (Heymann, 2006 p.16).

 

A autora expõe a disputa pública de historiadores sobre como a memória pode, e é usada como instrumento político servindo aos direitos humanos universais, mas, como sua ausência também é um artífice político.

Comenta como o exemplo do holocausto, inaugurou trinta anos depois do final da guerra o dever de memória contra as atrocidades perpetradas pelos nazistas aos judeus, e como tal exemplo, empoderou outros grupos que foram apagados ou escanteados da mestra da vida; como o dever de memória trouxe a baila,  o genocídio armênio, a escravização e o tráfico de escravizados na modernidade (Lei Taubira), entre outros, mas como esse dever de memória, abre o ralo do inferno aos revisionismos quando trata-se do colonialismo do século XIX, no qual, poderia-se atribuir positividades à colonização francesa na África. Tanto na colonização moderna como na contemporânea, o estado francês foi protagonista na subtração das liberdades individuais e da soberania dos povos africanos. Por que aquilo que se refere a colonização é “reparado”? E aquilo que se alude ao neocolonialismo se relativiza? Seria a passagem do tempo um automático instrumento de anistia? Com o passar do tempo, a história se ordena novamente? Nada melhor do que o tempo para fechar feridas? A memória e a história deve servir à ética e aos direitos humanos, caso contrário, há um duplo erro: no ato histórico e na interpretação.

          O texto de Heymann é sedutor, seu objetivo é discutir, à luz da experiência francesa, o dever de memória no Brasil. Enquanto na França há um passado que não passa, no Brasil há um passado que passa. Que tudo passa. É o excesso de esquecimento.

        Sociedade e estado brasileiros, ordinariamente, são conservadores em muitos casos. Cito dois exemplos que permeiam o texto de Heymann: O clássico exemplo de ser a última nação americana em abolir a escravização; e a anistia ampla e irrestrita no processo de democratização do final da década de 1970 e início dos anos de 1980. E como tais, quando trabalhados isoladamente em museus e memoriais, a saber, Museu Afro Brasil[6] e Memorial da Resistência[7], são geralmente aceitos, com pouca reação adversa. Esses exemplos, estão para parcela significativa da sociedade e estado brasileiros, assim como, o DDR Museum está para a atual sociedade e estado alemães. A sociedade brasileira enxerga a opressão contra os presos políticos e escravizados, mas isso é passado. E o tempo dará conta de fechar essas feridas. É a perpetuação do exótico.

Mas, quando a escravização e a repressão na ditadura civil-militar, a luz da ética e dos direitos humanos, batem a porta do estado brasileiro, reivindicando reparos históricos e em suas memórias, seja através da Lei  12.711 de 2012 que institui as cotas raciais com o objetivo de reparar danos sociais causados pela escravização; seja pela Comissão da Verdade, colegiado instituído pelo governo do Brasil para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, mais uma vez, o ralo do inferno do revisionismo se abre em forma de apologia ao Ustra[8] e negação ao Zumbi[9]. O revés toma corpo e potência e somos levados mais uma vez ao cortejo lúgubre. Somos os vencidos provisórios de um injusto destino? (BLOCH, 2002).

Para concluir, façamos um exercício de projeção de uma memória futura: desejo visitar, em um futuro não tão longínquo, o Memorial do Golpe de 2016[10] e não o Museu do Brasil Socialista. Entre o estado oculto e um museu de grandes novidades, os dados estão lançados, e ainda mais, “O Brasil tem enorme passado pela frente” - Millôr Fernandes.

 

* Julio Schneider Neto é historiador

 

 

Bibliografia

 

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

 

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Enaltecer Zumbi não é missão legal da Palmares. A crítica é liberdade de expressão. Disponível em: < http://www.palmares.gov.br>. Acesso em: 18 mai. 2020

 

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História, memória patrimônio. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n. 34, p. 91- 111, 2012.

 

HEYMANN, Luciana. O"devoir de mémoire" na França contemporânea : entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: CPDOC,, 2006. 27f.


[1] Texto escrito originalmente em 2020 e não publicado. Sua lembrança veio à tona em 19/03/2024, devido ao fato do presidente Lula declinar do projeto em criar um Museu da Memória e dos Direitos Humanos, focado no período da ditadura militar, imediatamente, também, o presidente decidiu que o governo federal não irá realizar nenhum ato alusivo aos 60 anos do golpe militar de 1964. No entanto, a memória paralela que rebateu à mente foi do projeto - iniciado por volta de 2012, hoje abandonado - do Museu do Trabalho e dos Trabalhadores (MTT) em São Bernardo do Campo/SP que setores da imprensa e da sociedade apelidaram levianamente de Museu do Lula.

[2] Localizada na margem do rio Spree, congrega cinco grandes museus alemães: Museu Pergamon, Altes Museum, Neues Museum, Alte Nationalgalerie e Museu Bode – construídos entre 1824 e 1930.

[3] Desenvolvido para atender a um requerimento do exército dos Estados Unidos, que necessitava de um veículo 4×4 leve para substituir o grande número de jipes da Segunda Guerra ainda em serviço, o M38 foi produzido pela Willys de 1950 a 1952.

[4] Os primeiros protótipos foram apresentados em 1936, mas o carro só começou a ser produzido em 1938. Chamava-se então KDF-Wagen. A sigla era a abreviação de "Kraft durch Freude" (Força pela Alegria), nome da associação responsável pela venda do veículo.

[5] O repertório da experiência francesa é vasto no texto de Manoel Salgado.

[6] Inaugurado em 2004 e localizado no Parque do Ibirapuera na cidade de São Paulo, seu acervo abarca diversos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, abordando temas como a religião, o trabalho, a arte, a escravização, entre outros temas ao registrar a trajetória histórica e as influências africanas na construção da sociedade brasileira.

[7] Sediado no antigo Deops/SP tem como um dos objetivos o compromisso cívico de (re)construção da memória e da história política do Brasil contra o autoritarismo, salvaguardando a democracia.

[8] Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil e torturador condenado. 

[9] Zumbi dos Palmares, foi um líder quilombola brasileiro, o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial. Recentemente a Fundação Zumbi dos Palmares relativizou veementemente a importância histórica desse líder quilombola.

[10] Hoje, em 2024, pode-se ler: Memorial do Golpe de 8 de janeiro. Nesse sentido, há um esforço na criação do Museu da Democracia na Esplanada dos Ministérios.

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