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Vestígios de Memória: A antiga Fábrica de Chapéus Souza Pereira, de Sorocaba (SP)

Carlos Carvalho Cavalheiro[1]


Na face urbana de Sorocaba, cidade do interior paulista, uma cicatriz insiste em rememorar o passado das fábricas que cognominaram a cidade de “Manchester Paulista”. Defronte à Praça Arthur Fajardo, conhecida também como Praça dos Canhões, descansa um resquício da antiga Fábrica de Chapéus Souza Pereira: uma fachada que sobreviveu à sanha daqueles que confundem o progresso com a destruição do passado.


De acordo com o Inventário dos Prédios Históricos da área central de Sorocaba, produzido pelo CONDEPHISO (Conselho de defesa do Patrimônio Histórico de Sorocaba) em 4 de setembro de 1984[2], o edifício da antiga Fábrica de Chapéus foi construído em 1885. Já no referido relatório consta que só restava a fachada.


Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro, 2016


Aparentemente, a manutenção da fachada se deu por força dos órgãos ligados à defesa do patrimônio, como o próprio CONDEPHISO, de maneira que ainda resiste nos dias de hoje. Essa vontade de memória, ou seja, a intencionalidade de se fazer ser lembrado pelas gerações futuras, converte essa fachada num lugar de memória. Pierre Nora, historiador francês, lembra que os lugares de memória são “restos”, ou seja, “ a forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela ignora” (NORA, 1993, p. 12 – 13).


Entenda-se, no entanto, que os lugares de memória podem ser categorizados de acordo com a sua visibilidade e usa intencionalidade. Levando-se em consideração que a memória é produzida dentro de um contexto de tensões e de disputas, incluindo o direito ao discurso, deve-se compreender que alguns lugares recebem maior atenção dos grupos detentores de poder, especialmente porque reforçam e justificam a manutenção do status quo. Sendo essa afirmativa verdadeira, a sua oposição, ou seja, o desinteresse pele memória de grupos subalternizados ou que disputam o poder, também o é.


Portanto, os lugares de memória não são – ou não podem ser – considerados todos como produzidos da mesma forma. Se assim fosse, imperativo seria imaginar que os grupos subalternizados dificilmente produziriam os seus lugares de memória. A análise dos lugares de memória deve pressupor a existência de diferentes categorias. Proponho a existência de 3 (três) dessas categorias: os lugares de memória invisível, os ocultos e os explícitos. Este último, por ser explícito é também decifrável (CAVALHEIRO, 2018).


Por lugares de memória invisível entendem-se aqueles que restam apenas em menções em textos ou na memória de narradores e contadores de história. Não existe o monumento em concreto. Por sua vez, os lugares de memória oculta são aqueles em que se encontram resquícios ou mesmo o monumento em si, mas que por desinteresse ou mesmo desleixo, são obstaculizados por outros ornamentos urbanos (como placas de trânsito ou de propagandas comerciais). Ainda são ocultos os lugares em que não existe informação explícita sobre a memória que ali repousa. Os explícitos, como o nome indica, são aqueles evidenciados por algum interesse dos grupos detentores de poder. Sendo evidenciados, devem conter alguma informação que, por conseguinte, pode ser decifrada. Por isso, os monumentos explícitos são sempre decifráveis (CAVALHEIRO, 2018).


A fachada de Fábrica de Chapéus Souza Pereira é um caso interessante de lugar de memória oculto. Ela ainda resiste porque representa as bases em que se sustentou a burguesia local enquanto imaginário construído sob a denominação de “Manchester Paulista” (CARVALHO, 2010). No entanto, representa também a existência e a resistência daquele grupo que foi o principal responsável pelo crescimento industrial de Sorocaba: a classe trabalhadora.


Como dito acima, o prédio foi construído por volta de 1885 para abrigar a Fábrica de Chapéus. Originalmente, a empresa foi constituída em 1852 pelos estrangeiros Antonio José Rogich e Simão Wenceslau Razzl e se localizava um pouco mais adiante, próximo da ponte sobre o Rio Sorocaba. Em 1881, o inglês Henrique Adams adquire a fábrica e, algum tempo depois, a transfere para o local defronte à Praça Arthur Fajardo (ALMEIDA, 2002, p. 248).


1908 Indústria – Sorocaba Operária. Acervo: Divulgação

Em 1898, o português Francisco de Souza Pereira, associado a Coats Vilela, adquire a fábrica de John Henrique Adams (PEREIRA, 1948). Trata-se, portanto, de importante lugar de memória da industrialização, ainda mais se considerarmos que é um dos poucos vestígios dessa natureza existentes na área central da cidade.


No entanto, além de ser uma memória da indústria, o lugar também guarda importante lembrança das lutas operárias. Ainda no século XIX, em 21 de novembro de 1890, os operários dessa Fábrica declararam greve por melhores condições de trabalho (CAVALHEIRO, 2009, p. 19). É uma das primeiras mobilizações ocorridas entre o operariado sorocabano.


Também foram os chapeleiros que constituíram a primeira associação anarquista de Sorocaba: a Liga de Resistência, fundada em 6 de abril de 1902. Os chapeleiros já haviam fundado uma das primeiras associações mutualistas da cidade, a Sociedade Beneficente Protetora dos Chapeleiros.


O episódio mais marcante que registra a memória desse prédio é a participação dos seus operários na Greve Geral de 1917, a primeira grande greve anarquista que se iniciou em São Paulo e, depois, se espalhou pelo interior no mês de julho daquele ano.


Os operários grevistas de outras fábricas, no intuito de conseguir a adesão de seus companheiros chapeleiros, arrombaram os portões da fábrica e negociaram a liberação dos trabalhadores junto à gerência da fábrica. Assim, esses operários engrossaram a fileira dos grevistas.


É um dos poucos edifícios da área central em que se preserva parte da greve de 1917. Havia uma fábrica de enxadas, há poucos metros dali, mas que foi derrubado e hoje é uma escola municipal e que tem como patronesse a esposa do proprietário da antiga fábrica.


A importância da manutenção dessa fachada da Fábrica de Chapéus Souza Pereira se traduz na possibilidade da existência de outra memória que se contrapõe àquela produzida pelos grupos detentores de poder.






Referências



ALMEIDA, Aluísio de. Sorocaba 3 séculos de História. Itu: Ottoni, 2002

BONADIO, Geraldo. Sorocaba a cidade industrial. Sorocaba: LINC, 2004

CARVALHO, Rogério Lopes Pinheiro de. Fisionomia da cidade – Cotidiano e transformações urbanas – 1890 – 1943. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Memória Operária. Sorocaba: Crearte, 2009

______. “’Tá vendo aquele edifício, moço?” – Lugares de Memória, Produção de invisibilidade e processos educativos na cidade de Sorocaba. Maringá: A R Publisher Editora, 2018.

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho., CAVALHEIRO, Marcelo Carvalho. Sorocaba Lusitana: 120 anos da Sociedade beneficente Vasco da Gama. Sorocaba: Crearte, 2018.

INVENTÁRIO DOS PRÉDIOS HISTÓRICOS DA ÁREA CENTRAL DE SOROCABA (SP). Sorocaba: CONDEPHISO, 1984

NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História (Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História/ Departamento de História, PUC-SP), São Paulo, v. 10. p. 7-28, 1993

[1] Mestre em Educação (UFSCar), Professor de História na Rede Pública Municipal de Porto Feliz (SP). Idealizador e um dos fundadores do Centro de Memória Operária de Sorocaba (CMOS). Contato: carlosccavalheiro@gmail.com [2] Cópia do acervo particular do autor.

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